O sociólogo Domenico De Masi sensibilizou a plateia da conferência “As perspectivas para a sociedade do século XXI” com um convite a uma mudança de comportamento, onde as pessoas possam doar às outras conhecimento, trabalho e, especialmente, felicidade. Para o autor da proposta do “ócio criativo”, o mundo vive hoje um excesso de competitividade incentivada pelo neoliberalismo, teoria econômica à qual, com uma ácida crítica, dedicou a primeira parte de sua fala, ao citar as premissas que regem as suas ideias.
De Masi analisou que, após a queda do muro de Berlim, na Alemanha, o comunismo perdeu na briga de forças dos sistemas econômicos dominantes no mundo, mas por sua vez o capitalismo não ganhou. “Enquanto o comunismo sabe distribuir, mas não sabe produzir; o capitalismo sabe produzir, mas não sabe distribuir”, afirmou, destacando que esse triunfo do neoliberalismo somente foi possível porque não houve o surgimento de um “neomarxismo”, provocando um desequilíbrio a favor das ideias liberais.
Como consequência desse desequilíbrio, citou a desigualdade crescente, onde os pobres estão cada vez em maior número e os ricos em menor número. De acordo com dados da ONU, citados pelo conferencista, em 1950, havia 32% de ricos e 68% de pobres; no ano 2000, 20% de ricos e 80% de pobres e, em 2050, serão 12% ricos e 88% pobres. Outra consequência são os grandes movimentos migratórios.
Também há, segundo Domenico De Masi, um desequilíbrio entre as necessidades humanas e os recursos naturais baseado na crença de que estes são infinitos. “Estamos a bordo de um carro sem marcha e sem freios que está se chocando contra os limites do planeta”.
O fim do trabalho é outro resultado desse desequilíbrio. “O ser humano está chegando a um estágio de produzir com o mínimo ou nenhuma mão-de-obra humana. Temos carros que trafegam sozinhos, sem motoristas, o que implica que não haverá mais trabalho para o motorista de táxi. Hoje os pais trabalham 10 horas por dia, mas os filhos estão desempregados. O Brasil tem uma taxa de desemprego de 10% e em países mais desenvolvidos essa taxa já é maior: na Itália, 12% há 10 anos, e, na Espanha, 22%”.
Para o sociólogo, as reformas não são mais suficientes para trazer o equilibro ao mundo atual. “Voltamos à época que há necessidade de uma intervenção de caráter revolucionário, o que chamo de revolução simples”.
Qual o futuro que nos espera?
A pergunta “Qual o futuro que nos espera?” foi respondida por Domenico De Masi com a demonstração de tendências extraídas de uma pesquisa abordando aspectos de demografia, tecnologia, economia, trabalho, lazer, ubiquidade e plasmabilidade, além de androgenia.
Em 2030, apontou, a população mundial será de oito bilhões e o crescimento demográfico começará a diminuir. Já os idosos com mais de 65 anos serão 910 milhões em relação aos atuais 420 milhões. “Serão não só de oito bilhões de bocas para alimentar, mas também de cérebros. Em cima de cada boca há um cérebro para pensar sobre como vamos fazer isso. Não é verdade que simplesmente envelheceremos mais. A maioria das pessoas envelhece somente nos últimos dois anos de vida, durante os quais as despesas farmacêuticas serão equivalentes a todo dinheiro gasto em medicamentos durante os anos da vida anterior”.
Na tecnologia, teremos produtos a custo zero e o fato de que o conhecimento não estará ligado à renda. “O século XXI será marcado pela engenharia genética, pela inteligência artificial, pelas nanotecnologias, pelas impressoras. Graças à informática afetiva, os robôs possuirão empatia. Poderemos levar no bolso todas as músicas, os filmes, os livros, a arte e a cultura do mundo. O problema é como transferir este imenso patrimônio do bolso para o cérebro”.
Nas questões econômicas e do trabalho, o sociólogo alertou para o arrefecimento das desigualdades e de um “desenvolvimento sem emprego”. “Se a cota do PIB destinada a remunerar o capital financeiro continuar a crescer e a cota destinada a remunerar o trabalho continuar a diminuir, a riqueza se concentrará mais ainda, com consequências catastróficas no equilíbrio econômico, ecológico e social”.
Considerando que o ser humano irá dispor em sua vida de 200.000 horas para o lazer, equivalentes a 8.300 dias e a 23 anos, o conferencista defendeu uma formação para essas atividades recreativas, assim como há a educação profissional, já que, segundo ele, em muito países, a população não sabe como aproveitar suas horas livres. “Não é o caso de nós, brasileiros e italianos, que sabemos como aproveitar a vida”, brincou.
No que chama de ubiquidade e plasmabilidade, De Masi afirma que a nuvem “informática terá transformado o mundo inteiro em uma única praça”, fazendo com que o conceito de privacidade desapareça.
Arrancando aplausos da plateia, a última tendência citada pelo sociólogo para o futuro da humanidade – e que seria resultado da supremacia dos valores “femininos” – foi a androgenia, uma espécie de mistura de características femininas e masculinas em único ser, tanto nas mulheres como nos homens.
Para De Masi, como em 2030 as mulheres viverão três anos a mais do que os homens, elas terão prevalência na formação acadêmica e muitas delas, previu, casarão com um homem mais jovem ou terão um filho sem ter um marido, enquanto para os homens ainda não será possível ter um filho sem ter uma mulher. “Por essa razão, as mulheres estarão no centro do sistema social e ficarão tentadas a gerenciar o poder com a dureza acumulada em dez mil anos de injustiças”, afirmou.
Excesso X doação
“Há um excesso de inteligência, seres humanos, arte e cultura, então podemos deixar de continuar competindo. Sabemos coisas que nem todos sabem e podemos doar esse conhecimento”, disse o conferencista, citando o caso de uma cozinheira que conheceu em uma favela de Salvador-BA que ensina os outros a cozinhar.
Para Domenico De Masi, podemos deixar para as máquinas o que é quantitativo, preocupando-nos com o que é qualitativo, o que nos permite misturar trabalho, estudo e lazer, ideia central do ócio criativo. “Aqui, por exemplo, estamos trabalhando um pouco, estamos estudando um pouco e eu, particularmente, estou brincando também, praticando o ócio criativo”. O trabalho também pode ser doado. “O neoliberalismo criou um exército de reserva de trabalhadores, os desempregados. Hoje nossos jovens estão condenados à inércia, condenados a consumir sem produzir. Eles poderiam trabalhar gratuitamente”.
Ao encerrar a conferência, parafrasendo Karl Marx, o sociólogo propôs a doação de felicidade. “Quando somos felizes, temos o dever de doar a felicidade, porque de nada vale a felicidade se não podemos fazer também as demais pessoas felizes”.
Leia abaixo a entrevista com o sociólogo:
P: Em sua conferência o senhor afirmou que o neoliberalismo surgiu do liberalismo, mas o marxismo não gerou um neomarxismo. Por que isso aconteceu?
R: Porque o neoliberalismo é filho do liberalismo e do capitalismo e esse não acabou como o comunismo, apesar de também não ter saído vitorioso. Como o comunismo ruiu a partir da queda do Muro de Berlim, não possibilitou que o marxismo gerasse também um novo fruto, à semelhança do liberalismo. Isso é difícil de acontecer quando uma doutrina acaba derrotada, como aconteceu com a marxista.
P: O problema da má distribuição de renda que hoje afeta o mundo e gera a crise do capitalismo não poderá ser superado com reformas, de acordo com a sua opinião. É preciso surgir uma revolução para que haja uma transformação de fato. Como seria essa revolução?
R: Esse é o tema do meu novo livro, Revolução Simples, em que defendo que, ao contrário do que imaginamos, as revoluções não precisam ser complexas. Elas podem ser simples. Vou dar um exemplo: fazer com que os desempregados trabalhem de forma gratuita é coisa simples, mas revolucionária. Hoje um pai trabalha enquanto seu filho fica desocupado. Se ele for trabalhar, ainda que de forma gratuita, acaba-se com o mecanismo competitivo que essa situação gera. Uma simples revolução é feita de coisas simples, mas fundamentais para se provocar mudanças.
P: O senhor propõe também que se estabeleça um grande pacto social para que haja uma transformação urgente no mundo. Como se daria esse pacto?
R: Entre os jovens e os velhos, os imigrantes e os autóctones, os homens e as mulheres, a fim de que sejam redistribuídas não somente as riquezas, mas também o trabalho, o poder e as oportunidades.
P: E como convencer as pessoas da necessidade de se estabelecer esse pacto?
R: Pelo conhecimento, não somente o científico, mas também o afetivo e o emotivo. Nós somos feitos de razão e de emoção. É preciso atingir toda a esfera psicológica de uma pessoa para convencê-la.
Suely Leitão da Conceição e Denise Gonring Moreira – WFCP/Reditec 2016.